A verdade e sua posologia

 * Por Flavia Valadares

Sou médica e cirurgiã oncológica e como professora de residência já notei uma inquietação permanente dos meus alunos mais jovens e também dos meus colegas mais velhos: como dizer a verdade sem tirar a esperança dos pacientes?

Vou me esquivar das inúmeras discussões filosóficas acerca dos conceitos sobre a verdade. Aqui uso o termo “verdade” como alguma notícia relacionada ao diagnóstico ou prognóstico de um determinado paciente.

paciente

Algumas profissões são frequentemente “portadoras de más notícias”: a medicina é um bom exemplo. Salvo os procedimentos estéticos e os exames periódicos (check-ups), não se procura um médico quando está tudo bem. Deste momento de crise podem vir más notícias. Tais notícias vão desde um diagnóstico de uma doença crônica menos limitante (ex.: hipertensão arterial), mais limitante (ex.: diabetes), ou fatal (ex.: câncer de pâncreas com metástases). Más notícias englobam também o tratamento necessário: seja cirurgia de urgência (ex.: apendicite), quimioterapia, ou mesmo uma mutilação (ex.:amputação de um membro).

Como nós do lado de cá (médicos) lidamos com a necessidade de informar o paciente (e sua família) sem tirar deles as esperanças? Infelizmente, o lugar comum do mundo atual é não se comprometer: seja com pessoas, com ideais, com metas. Como nós médicos pertencemos ao mundo, tal dificuldade nos acomete também. Mas temos uma oportunidade privilegiada (e também a obrigação) de vencermos nosso medo inicial e  construirmos legítimas relações de ajuda. A relação de ajuda nesse caso é assimétrica: um lado é o ajudador (médico) e o outro é o ajudado (paciente/família).  As estratégias de comunicação nessa complexa relação tem sido discutidas em diversas esferas.

O grande desafio chama-se empatia. Escuta atenta às mensagens verbais e não-verbais (cuidado: o não-dito é preciso e precioso!) e resposta proporcional e adequada ao conteúdo recebido. É difícil, é desafiador, toma tempo, toma energia, mas (good news!) é uma habilidade treinável que pode (e deve) ser melhorada no trabalho e na vida.

Quem pergunta realmente  quer saber? Algumas pessoas perguntam para se esconder da resposta. Vejam: não existe regra fácil. O quanto a pessoa quer saber? Em medicina, temos a premissa de não mentir. Mas entre a “mentira piedosa” e a “verdade nua e crua” temos caminhos intermediários. A verdade é como um remédio: tem dose, intervalo e duração. Não precisamos dizer tudo de uma vez. Ex.: “A senhora tem um câncer” é diferente de “A senhora tem um câncer incurável”. A relação é construída aos poucos, e a informação também. Sempre com generosidade, tentando compreender as necessidades e fraquezas do outro.

Como manter a esperança diante de um paciente terminal? Não devemos mentir sobre a gravidade do quadro clinico. Construímos a relação e, com ela, a informação. Nosso paciente está à beira da morte. E agora? Como dizer a verdade sem aniquilar a esperança? Através da nossa própria dúvida! Sabemos que uma pessoa está no fim da vida, mas as previsões são falhas. O fio que nos resta de dúvida é o fio da esperança para nós e para eles. Nada de esperança cega, mas sim a saudável dúvida de cada instante até que ele de fato aconteça. O real é o presente. O passado não é mais e o futuro não é ainda…

Para acolhermos questões tão delicadas, precisamos explorar nossas próprias dores, enfrentar nossa própria morte. Com toda a crise moral, social e política que se abate sobre a medicina nos tempos atuais, o antídoto possível é sermos melhores como médicos e isso é indissociável de sermos melhores como pessoas. Empatia é uma necessidade médica e também humana.

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Captura de Tela 2014-10-06 às 18.35.09Flávia Valadares: cirurgiã oncológica, aprendendo a ensinar medicina, curiosa demais, bicho-do-mato cosmopolita, ex-obesa, “metamorfose ambulante” em busca de equilíbrio e paz, expressando cada dia mais seu amor firme e fluido por si e pelos outros.