Existe vida além da maternidade?

* Por Juliana Baron

Gosto muito da diferenciação entre identidade e funções, para a vida. Já antecipo que não trago nenhum embasamento científico, mas como essa diferenciação me ajuda muito a entender minha própria existência, resolvi compartilhar. Até já escrevi sobre esse questionamento aqui, em 2013, quando me debatia na busca por descobrir quem eu era, ou quem eu sou, e agora, depois de um período imersa no paradoxo da maternidade, me vejo novamente buscando resgatar essa diferenciação para sobreviver diante de tantas demandas externas.

De forma sucinta, vou explicar a diferença entre identidade e função, antes de partir para falar sobre a maternidade. Identidade seria quem somos por baixo das funções que exercemos. Como se identidade fosse o nosso corpo, a nossa pele, e as funções fossem as roupas que vestimos. Identidade tem a ver com as nossas crenças, com a nossa alma e gostos. As funções seriam mais aquilo que estamos. Mãe, companheira, amiga, filha, profissional, são alguns exemplos. Obviamente, as duas fazem ligação direta. São diferentes, mas se conectam o tempo todo. Nossas funções influenciam nossa identidade (por exemplo, depois que eu me tornei mãe, mudei algumas crenças e me tornei mais resiliente) e nossa identidade influencia como exerceremos nossas funções (por exemplo, porque sou muito controladora, sofro com a imprevisibilidade da maternidade).

Agora, voltando ao foco desse texto, que busca repensar a linha tênue entre minha identidade e funções depois de alguns meses sendo praticamente mãe em tempo integral, me questiono e compartilho o questionamento com vocês (em especial, as leitoras que também passam por esse momento): Quem sou eu para além da mãe?

Talvez para quem não tenha filhos, seja simples destacar a mulher da mãe. Ou para quem tenha preguiça de grandes reflexões, não seja necessário repensar essa separação, mas quanto mais tenho contato com recém mães ou com mães que exercem a maternidade em tempo integral com dedicação, mais escuto lamúrias sobre o quanto elas já não se reconhecem mais. São mães que escolheram, bravamente, estar presentes na criação dos filhos, mas que sem querer, se perderam e se borraram no cenário caótico e comum da rotina de uma mãe. São mulheres que depois de um tempo vivendo aquele mundo da maternagem, conseguiram dar uma escapada e se deram conta que já não são mais as mesmas. Mas quem elas são, então? Do que gostam de ouvir além de Galinha Pintadinha? Do que gostam de comer além do que seja mais prático? Do que gostam de vestir além de roupas confortáveis? Do que gostam de conversar além de tipo de fralda, escola, educação infantil?

Entendam que esse texto não é uma crítica já que eu mesma me encaixo nele. Mesmo tendo uma ajudante em casa e um companheiro muito participativo, por vezes, percebo-me mergulhada até o pescoço no meu papel de mãe. E nem vou entrar na questão de como essas mulheres se enterram porque não tem outra solução, já que o pai é ausente, por exemplo. Aqui me refiro a quem está ali por escolha. E também acho que nem todas as mães se incomodam com isso (apesar de saber que essa é uma queixa da maioria), mas escrevo para as que se questionam e posso até dizer, mesmo para as que acham o máximo toda essa entrega, que se não houver um resgate da sua identidade, lá na frente, você poderá sobrecarregar o seu filho com frases como, “Mas eu parei a minha vida para cuidar de você”.

Por um período, considero normal ou comum essa dedicação exclusiva, mas depois de um tempo, acho que vale o esforço para se reencontrar. Você possui várias áreas importantes da sua vida e quando uma recebe muito mais atenção do que as outras, a roda da vida não gira e você começa a se incomodar. Trago o meu exemplo, já que sou a única pessoa de quem sei sobre os desejos e motivações. Organizei-me para ficar com meus filhos durante esse (quase) primeiro ano de vida do meu segundo filho. Tranquei a faculdade no ano passado e nos primeiros três meses, os últimos da minha segunda gestação, tirei bastante tempo para meu filho mais velho. Depois que o bebê nasceu, fiquei em casa, sem estudar ou trabalhar, o que farei até o mês que vem, quando retornam as minhas aulas. Mesmo tendo me preparado para essa dedicação quase exclusiva nesses primeiros meses, muitas vezes, me vi incomodada por dedicar toda minha energia numa área só. Sei que foi uma escolha importante, mas também sei que será importante retomar as outras áreas e alimentar minhas outras funções.

Nessa altura do texto, você pode estar se perguntando, mas como eu posso resgatar minha alma e descobrir minha identidade, mesmo com tantas demandas? Porque eu sei que não temos tempo sobrando (mas também sei que se quisermos, podemos separar algum), que nem sempre é fácil definirmos quem somos e para algumas mulheres, diferente do meu exemplo mencionado acima, talvez não seja importante retornar ao trabalho ou retomar projetos pausados. Talvez elas só queiram continuar sendo mães por tempo indefinido, mas mesmo assim queiram se encontrar. Porque é óbvio que você pode continuar sendo uma mãe zelosa, presente, preocupada, disponível, mas isso não significa que você precise se abandonar. Mesmo imersa na sua condição de mãe, você pode se sentir realizada como pessoa e como mulher.

Já aviso que não venho propor nenhuma fórmula mágica, até porque nem é fácil você buscar sua identidade ou descobrir o que alimenta a sua alma. Conhecer-se a fundo não é moleza, mesmo para quem nem é mãe, imagina para quem é e não tem tempo, muitas vezes, nem para escovar os dentes. Você aceitar mergulhar para dentro de si, colocar o que pensa sobre si mesma em perspectiva e topar se virar do avesso, é exercício para quem tem coragem. Mas ao mesmo tempo, posso dizer que é muito prazeroso e recompensador.

Para quem não tem acesso a terapia, bons livros ou não dispõe de tanto tempo sobrando para se perder em devaneios, sugiro que comece sentando e anotando o que você mais gosta de fazer. Esqueça a parte do “ficar com o meu filho”, “olhar fotos do meu filho”, porque isso eu já sei que você gosta, caso contrário, você não tinha nem chegado até aqui. Tente ir por caminhos como “gosto de ler”, “gosto de maquiar amigas”, “gosto de escrever”, “gosto de fotografar” e pratique ao máximo essas atividades que você escreveu. Esse exercício pode parecer bobo e simples, mas é transformador. Descubra o que você gosta de fazer e faça com a frequência possível.

Depois você pode fazer uma auto-observação e anotar quais são suas características mais latentes. Você é controladora? Irrita-se com facilidade? E o que gostaria de mudar? O que te incomoda? Talvez você possa tentar ser mais leve, verificar da onde vem tanta insatisfação. Ainda nesse exercício, pergunte às pessoas que te cercam, o que elas acham de você. Aí, aprofunde sua auto-observação e peneire o que você acha que é da pessoa e o que pode mesmo dizer algo sobre você. Gosto muito dessa construção diante do outro, mas é preciso ter cuidado para não se basear apenas naquilo que os outros pensam de você.

Ajuda muito também você perceber o que é importante para você. Quais são seus valores, dos quais você não abre mão. Por exemplo, eu sou muito família e jamais poderia tomar decisões que interfiram nessa minha condição. Talvez para você seja importante guardar dinheiro, então você não pode tomar decisões que atinjam esse seu valor.

E por fim, diante de toda a loucura da vida de mãe, encontre o amor-próprio. Ele pode ter se perdido com tanta bagunça, mas te garanto que ele ainda está por aí. Pode ser no meio dos brinquedos do seu filho, no armário bagunçado da cozinha ou na tulha de roupas para passar. Porque li esses dias que só amamos o que conhecemos e só conhecemos o que amamos. Quando abrimos caminho para esse autoconhecimento, essa descoberta de quem somos para além daquilo que fazemos, conseguimos nos amar. E somente quando nos amamos, podemos amar o outro de maneira livre, sem condicionamentos, sem exigências, sem dependência.

Portanto, existe vida além da maternidade? No sentido de ainda conseguirmos nos reconhecermos quando não estamos atendendo às demandas alheias? Claro que existe, desde que haja um esforço e um desejo de nos encontrarmos em meio às dores e as delícias de ser mãe.

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Baron* Juliana Baron Pinheiro: uniu seu amor pela escrita com um tom questionador que a acompanha desde que nasceu. Costuma refletir sobre a vida, sobre a maternidade, casamento, escolhas e outros temas do seu cotidiano. Adora um curso de autoconhecimento (em especial, os dias da sua análise), fazer faxina e comprar livros. Formou-se em Direito, mas felizmente nunca precisou atuar na área. Hoje é coach e estuda Psicologia. Escreve também no seu blog “Psicologando – Vamos refletir?” (www.blogpsicologando.com), nos milhares de cadernos que coleciona, no projeto do seu livro, no bloco de notas do seu Iphone, nas cartas para os amigos e em qualquer superfície que cruza o seu caminho.