Escolha x descoberta profissional

 * Por Flavia Valadares

Meus alunos questionam constante e progressivamente, à medida em que avançam no curso, como escolherão sua especialidade médica. Clichês como “fazer o que se gosta” nem de longe respondem a essa dúvida tão complexa. Acredito mais em uma descoberta de potencialidades do que numa escolha rígida de um caminho único. Defino as potencialidades como uma soma da vocação (talento inato) e do treinamento (talento adquirido).

Decisão complexa mas não irrevogável. Insisto primeiro na impermanência: nada é definitivo (nem mesmo sua caríssima escolha profissional). Assim a escolha pode se tornar mais leve (sem ser leviana). Decidir-se com base no presente e ao mesmo tempo contemplar projetos futuros é algo que a vida nos exige o tempo todo.

duvida-size-598

Substituo o clichê “fazer o que se gosta” por “gostar do que se faz”. Explico: nem sempre conseguimos evitar as frustrações, mas podemos minimizá-las através do empenho e da certeza do trabalho bem feito.

Para qualquer escolha na vida, quanto mais autoconhecimento, maior a chance de que ela traga resposta a anseios profundos do ser. Autoconhecimento é um termo multifacetado.

A escolha da especialidade médica vai muito além daquele assunto que o aluno mais gosta de estudar nos livros…

Alguns elementos tangíveis para a tomada de decisão: qual é sua necessidade real de dinheiro? Não, não estou falando da idéia disseminada de que quanto mais dinheiro, melhor.

Falo da demanda real por conforto material, que é variável de pessoa para pessoa e numa mesma pessoa ao longo do tempo. Qual é sua real capacidade de trabalho? Fato: tem gente mais produtiva e gente menos produtiva no mundo. Tem gente que gosta de trabalhar mais horas. Cada um com suas demandas internas, tentando equilibrar as externas. Qual é a sua capacidade de trabalhar em equipe? Qual é a sua necessidade de exercer poder? Qual é sua capacidade de exercer liderança?

Elementos “geográficos” ajudam também: Quer trabalhar em hospital? UTI? Centro cirúrgico? Pronto-atendimento? Consultório? Público? Privado? Filantrópico? Quer morar em cidade de grande/médio/pequeno porte? São muitos os critérios, mas são mais razoáveis do que decidir algo fechado em si (ex.: disciplinas que mais gostou durante a faculdade). A decisão deve ser equilibrada com o meio externo, pois o exercício de qualquer profissão se dá no mundo real.

Por fim, narro como fiz minhas escolhas-descobertas: do prazer imenso e da diversão que foi cursar a graduação; do sentimento de inadequação que me acometeu durante a realização do meu sonho (residência em cirurgia geral no hospital que considerava modelo); da posterior descoberta da cirurgia oncológica como especialidade; da dolorosa construção de conhecimentos e habilidades cirúrgicas que geraram a autonomia profissional que eu tanto buscava; da aplicação de tudo isso numa cidade do interior de MG; da satisfação inesperada de poder compartilhar com alunos tudo que aprendi na medicina e na vida. Não quero que sigam meu caminho, mas pretendo inspirá-los na forma de exercer a profissão, na busca de crescimento pessoal e no encontro e realização dos sentidos para a vida. “Se eu tivesse mais alma pra dar eu daria. Isso pra mim é viver” (Caetano Veloso e Djavan)

_______

Captura de Tela 2014-10-06 às 18.35.09Flávia Valadares: cirurgiã oncológica, aprendendo a ensinar medicina, curiosa demais, bicho-do-mato cosmopolita, ex-obesa, “metamorfose ambulante” em busca de equilíbrio e paz, expressando cada dia mais seu amor firme e fluido por si e pelos outros.