Crônicas da vida – Hipocrisias nossas de cada dia

Por Mariana Martinho

Janeiro

– Meu Deus, este calor é insuportável! É impossível trabalhar de terno e gravata num país como este! Deveria existir uma lei decretando férias coletivas!

Ao chegar ao escritório o homem senta em sua sala e logo recebe um de seus funcionários que solicita um período de 15 dias de férias para viajar com a família. Obviamente o homem nega o pedido.

– Incrível como esse povo é folgado, só porque é verão quer ficar de passeio na praia às custas de gente trabalhadora como eu!

Fevereiro

– Ahh, que trânsito! É um absurdo demorar seis horas para conseguir chegar até o Guarujá! Maldito feriado de Carnaval! Por que esse bando de gente não fica em casa, ou pelo menos poderiam ter ido viajar de madrugada! – Diz o homem, que não só se negou a ficar em casa no feriado como também optou por pegar a estrada no sábado de manhã.

 

Março

– Que chuva! Agora é todo dia assim, esse temporal sempre no horário de voltar para a casa! E essas enchentes então, é tudo culpa dessa imundice! Essa cidade é muito suja, os rios todos poluídos! Certeza que só alaga por que tem muito lixo tampando os bueiros!

Distraidamente em meio aos resmungos, o homem abre um pacotinho de balas e joga a embalagem no chão.

 

Abril

– Nossa, Maria você viu aquilo? – Pergunta o homem à esposa. Ambos, parados ao lado do carro, acabaram de presenciar uma ultrapassagem perigosíssima em alta velocidade. – Só pode estar drogado! Como alguém pode ser irresponsável a esse ponto? Vai acabar matando a si mesmo e a pessoas inocentes que não tem nada com isso! Vai acabar destruindo famílias …

-Verdade – concorda a esposa – Querido, quer me passar as chaves?

– Imagina! – responde o homem – eu tomei apenas uma latinha de cerveja!

 

Maio

-Eu acho um absurdo essa história de “vale-presente”, que coisa mais impessoal! Qual a graça de pagar por algo que a própria pessoa vai escolher? Isso não é presente! Acaba com toda a graça da surpresa!

Segundos depois o homem conversa ao celular.

-Querida será que você pode fazer o favor de passar no shopping para comprar o presente de aniversário do Joãozinho por mim? Deixei para cima da hora e acabou não dando pra eu ir …

 

Junho

– Que ódio! Acabaram de me contar o fim daquele filme novo que está passando no cinema! – reclama o homem.

– Que filme? – responde o amigo

– Esse novo que é baseado naquele livro que a mocinha vira freira e o cara vira gay no final sabe?

 

Julho

-Eu acho um absurdo suspender o rodízio na cidade. Esse prefeito acha que todo mundo trabalha em escola? Eu não conheço ninguém, além dos meus filhos, que esteja de férias em julho!  – resmunga o homem, que chegou ao escritório 15 minutos mais cedo porque o transito estava tranqüilo.

 

Agosto

-Esse tempo é muito louco! Como pode no inverno fazer tanto calor? As estações do ano servem pra determinar previamente se vai estar calor ou frio! Eu saio de casa de manhã todo encapotado e tenho que descascar a cebola ao longo dia, que horror!

Uma semana depois:

– Que absurdo esse frio! Isso não é um país tropical? Só falta nevar agora …

 

Setembro

-É impossível viver de condução nessa cidade! Além de ser um abuso cobrar três reais a tarifa do ônibus, é sempre tão lotado e demora tanto tempo para passar! Parece que todo dia é dia de greve!  – reclama o homem cujo filho pega quatro conduções por dia pra estudar pois o pai se nega a acordar 20 minutos mais cedo para dar-lhe carona.

 

Outubro

-Eu acho uma falta de respeito tão grande esse vizinho de baixo! Ele liga a música no último volume! Agente não é obrigado a ouvir o tipo de música que ele gosta! Ninguém deveria ser submetido a esse tipo de coisa! É uma violação ao nosso direito de escolha! – diz o homem ao síndico do prédio. Ambos estão conversando enquanto fumam um cigarro na sacada. No apartamento ao lado, uma criança brincando na varanda tosse com a fumaça.

 

Novembro

– Impressionante como as pessoas gastam dinheiro a toa, por isso estão sempre pobres! Não me conformo quando vejo um favelado usando roupa de marca! Eles gastam dinheiro com tênis caros em vez de comprar comida pras crianças! O pouco que ganham vai embora fácil com coisas desnecessárias! – comenta o homem com a atendente da loja de eletrônicos. – Mas, voltando ao assunto, posso dividir esse Ipad em dez vezes sem juros no cartão?

 

Dezembro

– Meu Deus, uns com tantos e outros com tão pouco né? Incrivel como essa época do Natal agente fica mais humano! – disse o homem após dar alguns trocados a uma criança que vendia doces no farol.

O carro balançou, como se tivesse passado sobre uma pedra. Ao perguntar o que era, a esposa recebeu a resposta:

– Não era nada querida, apenas uma pomba! Esses ratos de asas me dão tanto nojo!

 

Janeiro

– Ahh, que calor insuportável …

 

_______________________________

Médica veterinária, metida a escritora e gestora de projetos (que!?). Roqueirinha de estilo e conceito de moda peculiares. Extremamente enfática e exagerada, tem a imaginação descontrolada e vive numa realidade paralela. Ama gatos, contos de fadas e ficções and likes to mix up words of 2 different languages at the same phrase! No twitter @ypioka71 / Facebook / E-mail marypuck@yahoo.com.br

Se você quiser ser um colaborador do blog como ela veja mais aqui!

_____________________

Outros artigos relacionados

Grande merda!

O desejo incontrolável

A velha empacada

About the author

Sonhador nato, psicólogo provocador, apaixonado convicto, escritor de "Como se libertar do ex" e empresário. Adora contar e ouvir histórias de vida. Nas demais horas medita, faz dança de salão e lava pratos.

Related posts