Malhar o Judas

Me lembro da cena ocorrida todos os anos numa mesma esquina calma da Lapa de Baixo.

Mais ou menos assim

Sr. Manoel olhava para aquele poste e criava um círculo mental forjado pelos olhos em que só podiam entrar os bravos e fortes. Essa cerca imaginária tinha um propósito quase mítico: malhar o Judas. Eu não era dos bravos e fortes, então só olhava o “espetáculo sangrento”.

De algum lugar que eu não sabia surgia um boneco de pano do tamanho de um homem que era devidamente colocado amarrado ao poste. Aqueles meninos que se autoelegiam os justiceiros se posicionavam em volta do “corpo” quase falecido como touros com narinas arfantes.

Quando o sinal era dado algo possuia aqueles garotos e em cerca de dez segundos (que me pareciam minutos) destrossavam aqueles “homem” como um rotywailer acaba com um gatinho indefeso.

Minha mãe que sempre me esclarecia de tudo o que eu ignorava me explicou: “É Judas, Fred!”

“O que ele fez para merecer isso, mãe?” – eu rebati com certo amargor e tristeza.

“Ele traiu Jesus que morreu crucificado no dia de ontem, sexta-feira. Era seu amigo íntimo e entregou ele aos torturadores.”

“E isso faz com que mereça ser torturado assim, lembro que ano passado isso aconteceu também, já não basta uma vez?” – retornei já aflito, afinal eu já queria entender esses assuntos sérios da vida.

“É uma tradição, Fred, há dois mil anos se lembra disso por conta de Jesus e para que nada disso aconteça de novo, quando você crescer mais talvez possa entrar ali e fazer o mesmo com Judas, mas só se quiser.”

Curioso, minha mãe nem se dera conta que respeitou meu sentimento de indigniação e me deu a chance de estravasar alguma raiva caso eu quisesse. “Só se quiser.”

Cresci, mas nunca participei daquela rixinha contra um homem que já se encontrava caído antes da briga começar.

Os anos se passaram e mergulhei profundamente em tudo o que era a cultura bíblica. Sabia passagens do velho e do novo testamento de cabeça e queria entender tudo o que se passou historicamente e mais ainda qual o era o clima psicológico que moldava toda uma geração de cristãos no mundo todo.

Estamos imersos nessa mentalidade cristã que malha o Judas, por isso trato disso aqui e não questiono religião, mas o que ela reflete da nossa natureza humana.

Todos temos um Cristo, um Judas e os cobradores dentro de nós.

O cristo de nossas mentes representa aquele nosso hábito de fazer o bem, ser injustiçado e não reconhecido.

O judas é aquela parte que erra, trai, engana e passa a perna.

O cobrador é aquele que reivindica pátrios poderes sobre a moral humana e como um justiceiro implacável pesa a mão e pune, se necessário.

O ponto é, malhamos Judas reais e imaginários o tempo todo.

Notem a natureza da mágoa e do perdão. Se não bastasse nos sentir ofendidos uma vez fazemos questão de arrastar uma história por anos a fio, talvez uma vida inteira.

Como o Sr. Manoel armamos a arena para depredar aquele que supostamente nos agrediu e ficamos repassando cenas de tortura mental para nos sentirmos vingados (dizemos que é justiçados) diante da ofensa sofrida.

Minha tese é que não queremos esquecer. Não porque é importante manter o velho ritual de sustentar honrosamente a memória das vítimas protegidas, mas porque a condição de vítima oferece vantagens emocionais. Muitas vantagens.

A quem podemos culpar por nossos fracassos, perdas, frustrações e desventuras se não temos um Judas para malhar?

Teríamos a árdua tarefa de colocar o rabo no meio das pernas e assumir que não fomos tão competentes como gostaríamos. Não, é melhor apontar o dedo para bem longe e avançar sobre o inimigo “de verdade”. E assim passamos muitos anos nos enganando com as pessoas, pior ainda com nós mesmos.

Se me perguntassem se o engano com a mulher que me fez mal, o sócio que me traiu, os pais que me negligenciaram foi deles, seria fácil dizer, sim, foi deles. Eu ainda poderia continuar me torturando ao tentar reivindicar justiça e retratação de cada um dos meus “ofensores”. Mas nisso, eu estaria dando muito lugar de destaque em meu coração e sei que tenho coisas importantes a realizar.

Cada vez que alimento essa falsa justiça que malha um oponente eu perco um tempo valioso que poderia produzir verdadeiros “milagres”.

Hoje em dia, quando meu coração quer entrar na arena para guerrear com alguém, no trânsito, no relacionamento amoroso, na família ou no trabalho, continuo agindo como aquele menino que fui diante do boneco vingado. Passo a vez…

Amém!

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About the author

Sonhador nato, psicólogo provocador, apaixonado convicto, escritor de "Como se libertar do ex" e empresário. Adora contar e ouvir histórias de vida. Nas demais horas medita, faz dança de salão e lava pratos.

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